Entenda como que o livro “O Senhor dos Anéis” se transformou em um símbolo da extrema direita na Itália
9 de fevereiro de 2024
Uma inusitada exposição está em cartaz desde novembro na tradicional Galeria Nacional de Arte Moderna e Contemporânea, em Roma, dedicada originalmente às artes visuais. Em vez de telas ou esculturas, uma ala do museu está ocupada por objetos como um dicionário de dialetos ingleses antigos, uma escrivaninha cheia de papéis e um baú de viagem do século 19.
Trata-se da mostra Tolkien: Homem, Professor, Autor, que ficará exposta até 11 de fevereiro. É uma homenagem ao escritor e professor universitário britânico John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973), conhecido como J.R.R. Tolkien e autor de livros famosos em todo o planeta, como “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis”. Poderia ser mais um caso de um museu que se abre para apresentar atrações populares e que transitam por diferentes meios — como, no caso, o universo do escritor e seus livros.
Mas o fato da primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, ter diversas vezes expressado sua admiração por Tolkien gerou questionamentos sobre a motivação da mostra no museu público, mantido pelo governo nacional. Meloni é a principal liderança do Fratelli d’Italia, partido nacionalista e conservador.
Na origem do partido de direita estão ex-membros dos extintos Partido Nacional Fascista e Partido Republicano Fascista. A primeira-ministra já se referiu a “O Senhor dos Anéis” como um “livro sagrado”.
Em sua autobiografia, Meloni relatou que, quando jovem, ela e outros ativistas do Movimento Social Italiano — fundado por veteranos fascistas — vestiam-se como os personagens da saga de Tolkien para alguns eventos. Em 22 de setembro de 2022, no último evento da campanha que levaria Meloni ao posto máximo da política italiana, o ator Pino Insegno, dublador do personagem Aragorn na versão italiana da trilogia cinematográfica “O Senhor dos Anéis”, foi quem deu as boas-vindas a ela.
O ator fez um discurso adaptado de falas do personagem Aragorn.
Mas a admiração da obra de Tolkien pela direita italiana não é de agora e nem começou com Meloni: a tendência tem origem na década de 1970 e foi retomada na última década. Por quê?
Discurso do ‘nós contra eles’
Muitos acreditam que a identificação da direita radical com a obra de Tolkien tenha se dado de modo muito mais forte na Itália por conta da primeira tradução de “O Senhor dos Anéis” publicada lá.
Na edição, coube ao filósofo e ensaista Elémire Zolla (1926-2002) a missão de escrever o prefácio. Zolla não era um fascista, mas sua obra, conservadora e apegada a antigas tradições, era de alguma forma próxima à corrente ideológica dessa nova direita italiana. Em seu texto, Zolla planta algumas sementes. Ele propõe uma leitura simbólica da obra de Tolkien, analisando a luta de Frodo e seus companheiros contra as forças obscuras como um embate entre o progresso e a tradição identitária.
Hoje deputado pelo Fratelli d’Italia, o político Basilio Catanoso declarou à imprensa em 2002 que o sucesso de “O Senhor dos Anéis”, cujo primeiro filme acabara de ser lançado, deveria ser instrumentalizado pela direita.
“Queremos usar a oportunidade como um incrível vulcão para ajudar as pessoas a entender nossa visão de mundo”, afirmou ele, que na época era líder da ala jovem do partido Alleanza Nazionale. “Existe um profundo significado nesta obra. ‘O Senhor dos Anéis’ é a batalha entre o indivíduo e a comunidade”, definiu Catanoso.
Professor na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, o antropólogo brasileiro David Nemer afirmou à BBC News Brasil que os livros de Tolkien se juntam a outros que foram “apropriados” pela direita radical. “Fazem isso porque buscam uma literatura para endossar e teorizar sua própria existência. E nada mais convincente, para fazer isso, do que pegar autores e obras já amplamente lidos e, de certa forma, aceitos na sociedade.”
“Vemos eles se apropriando de clássicos de Roma e Grécia antiga até os mais atuais, livros como ‘1984’ de George Orwell, e ‘O Senhor dos Anéis’, de Tolkien”, analisa Nemer. Nemer lembra da invasão do Capitólio americano, em janeiro de 2021, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump se manifestaram agressivamente contra a posse do seu sucessor legitimamente eleito, Joe Biden.
“Alguns usaram capacetes gregos que remetiam a obras clássicas. Eles distorcem as narrativas para reforçar um discurso de salvação da raça branca contra os bárbaros”, diz Nemer. “Há sempre um discurso de nós contra eles. E é aí que entra a questão de ‘O Senhor dos Anéis'”, comenta.
Luta contra ‘sistema globalista’
“O Senhor dos Anéis”, uma continuidade do universo inaugurado por “O Hobbit”, gira em torno de uma batalha contra Sauron, o Senhor das Trevas, e seus seguidores, que buscam dominar toda a Terra Média.
“Não é de surpreender que eles utilizem [essa narrativa] para explicar a política do ‘nós contra eles'”, diz Nemer sobre os apoiadores da direita.
“O [personagem] Frodo é pequeno, frágil, totalmente oprimido pelo sistema. Na lógica deles, nós somos os hobbits lutando contra esse sistema globalista. E vamos lutar contra todas as forças do sistema para vencer o mal. Eles usam muito isso, veem esse homem comum branco como sendo o oprimido nessa nova ordem mundial, que é o globalismo”, pontua o antropólogo.
O “globalismo” é um termo que vem sendo usado pela direita mundial para se referir a um posicionamento que seria contrário ao nacionalismo e ao patriotismo.
Pesquisador da obra de Tolkien na Universidade de São Paulo (USP) e cofundador do site Valinor, especializado no assunto, o jornalista Reinaldo José Lopes analisa que as disputas retratadas em “O Senhor dos Anéis” são associadas pela direita italiana a seu desejo de conter a imigração.
Para ele, esse é o principal livro de Tolkien incorporado pela direita do país.
“O Hobbit”, na sua análise, é “um livro infantil, mais ingênuo, e menos relevante” para esta interpretação política.
“[A história de ‘O Senhor dos Anéis’] Gira em torno de uma guerra de civilizações, de povos e até espécies inteligentes diferentes, na qual há sociedades bem estabelecidas na região ocidental da Terra Média […] que são atacadas e assediadas por um inimigo imperial, o Sauron”, diz Lopes, tradutor para o mercado brasileiro dos livros do autor britânico.
“O principal elemento que leva a isso [o uso pela direita italiana] é justamente o fato de enxergar a situação atual como um conflito entre o Ocidente e o resto. E esse resto estaria sob o domínio de um poder maligno.”
“Isso mexe com o imaginário desse pessoal e muitas vezes esses povos que estão atacando são retratados com uma aparência não europeia, com pele mais escura ou pele do extremo Oriente.”
Mas o tradutor frisa que, na obra de Tolkien, “não existe, a rigor, nenhuma descrição ou afirmação de que esses povos seriam intrinsecamente ruins ou perversos”.
“O que existe é o fato de eles terem sido doutrinados e corrompidos. É por isso que eles atacam”, diz Lopes. “É preciso forçar muito o cenário da obra ficcional para dizer que se aplica à situação atual da Europa.”
Nemer diz que a direita radical italiana praticou “weaponization” na obra de Tolkien — o termo, em inglês, seria o equivalente a instrumentalizar alguma coisa de forma bélica, armamentista.
“Em vida, o próprio Tolkien falou que não queria que a jornada épica do Frodo fosse interpretada como uma jornada do nosso dia a dia. Se há questões concretas, políticas, que foram materializadas na obra, ele não queria que fosse feita essa ‘weaponization’ para fins específicos, para justificar ou legitimar um governo extremista”, comenta o antropólogo.
Neste cenário, Nemer vê um conflito de interesse na exposição sobre a obra de Tolkien em um museu estatal.
“Eles estão claramente instrumentalizando uma obra para justificar a existência desses valores da extrema direita no governo”, afirma Nemer.
‘Campo Hobbit’
Mas a admiração da direita italiana com a obra de Tolkien não foi invenção de Meloni. Para entender essa conexão é preciso recuperar as ideias de um teórico italiano que se tornou guru da direita contemporânea mundial: Julius Evola (1898-1974). O controverso filósofo idealizava uma sociedade aristocrática muito próxima ao fascismo. Em sua obra mais conhecida, “Rivolta contro il mondo moderno” (em português, “Revolta Contra O Mundo Moderno”), o filósofo faz uma radiografia do que seria, para ele, uma Europa condenada a um declínio inexorável.
E Evola apontou duas razões para esta queda: o progresso, que afastava as pessoas das tradições; e a a miscigenação cultural.
Para Evola, a Itália havia sido entregue à retórica do progresso. E a única solução seria a recuperação de mitos tradicionais por meio da arte, da religião e, claro, da política. Suas ideias encontraram solo fértil na juventude conservadora italiana.
Foi a mesma juventude que, nos anos 1970, ganhou dois livros para amar. Em 1970, saiu pela primeira vez “O Senhor dos Anéis” em italiano; em 1973, “O Hobbit”. Tolkien se tornou um fenômeno editorial no país.
Na analogia da direita, o anel de poder de Tolkien, adormecido, buscando o momento de ressurgir, era um símbolo da tradição que precisava ser recuperada. Em 1976, jovens mulheres da direita radical italiana fundaram em Florença uma revista chamada “Eowyn” — nome da personagem caracterizada como mulher guerreira na obra de Tolkien.