Yves Saint Laurent, o costureiro que vestiu as mulheres em luta pela emancipação

30 de janeiro de 2023

A cidade é Paris, o ano é 1966. Na primeira fileira da plateia, em um elegante salão de alta-costura, você assiste a um desfile de moda. De repente, em meio a um coro de murmúrios e exclamações de surpresa e admiração, entra na passarela uma modelo. Ela não está usando vestido — mas, sim, um terno elegante e impecavelmente cortado, composto por jaqueta e calça. Se hoje uma mulher de terno deixou de ser motivo para tanto frisson, isso se deve, em grande parte, a um estilista chamado Yves Saint Laurent.

Nascido na Argélia em 1936, filho de pais franceses, Saint Laurent é tido como o homem que vestiu as mulheres em sua luta pela emancipação, além de ter sido também um “democrata” da moda — o primeiro grande nome da alta-costura a abrir sua própria boutique e oferecer versões prêt-à-porter de suas criações exclusivas a preços mais acessíveis.

Em uma edição dedicada a Saint Laurent, o programa The Forum, do Serviço Mundial da BBC, reuniu três profissionais do mundo fashion para falar sobre a vida e a obra daquele que foi, para muitos, um revolucionário da moda.

Os entrevistados — Olivier Flaviano, ex-diretor do Museu Yves Saint Laurent, em Paris; Emilie Hammen, professora de história da moda no Institut Français de la Mode, em Paris; e o estilista Charles Sébline, um dos últimos assistentes de Saint Laurent, que trabalhou com ele durante seis anos — contam histórias e tentam definir o estilo e a maneira como ele pensava a moda.

Os três iniciam o bate-papo dizendo quais são suas peças favoritas do estilista.

Leia, a seguir, este e outros trechos da conversa.

Um terno, um vestido e um casaco — três obras-primas
Curiosamente, os franceses usam uma palavra inglesa, smoking, para dar nome ao terno, que os ingleses chamam de suit.

Segundo uma teoria, o termo smoking adotado pelos franceses teria sua origem na era vitoriana, quando surgiu, entre homens ingleses, a moda de vestir uma jaqueta específica para fumar— a chamada smoking jacket.

Emilie Hammen diz que se pudesse escolher uma peça de Saint Laurent para vestir, escolheria uma das versões do smoking que ele criava com maestria.

“Foi uma de suas criações pioneiras em 1966, uma peça que ele reinterpretou ao longo de toda a sua carreira”, explica.

“Enquanto mulher, jovem e profissional, escolho Le Smoking.”

Com seu terno incrivelmente ousado (para a época), Saint Laurent começava a imprimir sua marca na história da moda.

A peça favorita de Olivier Flaviano, por outro lado, nos leva para quase meio século depois, para o momento em que o estilista se despede da carreira. A última coleção de Saint Laurent foi lançada em 2002, coincidindo com uma retrospectiva da obra do estilista no centro cultural parisiense George Pompidou. A coleção de primavera/verão incluía uma série de vestidos de chiffon de seda. Flaviano diz que escolheria um deles.

Vestidos da última coleção de Yves Saint Laurent em desfile que incluiram peças originais de coleções anteriores “Acho que representam aquilo que Saint Laurent procurara sua vida inteira”, ele analisa.

“Essa linha pura, simples. Ele costumava dizer que o que ele realmente queria encontrar era um jeito de criar um vestido que fosse nada e tudo ao mesmo tempo.”

Já a peça favorita de Charles Sébline, ex-assistente do estilista, foi lançada na primavera/verão de 1971. “Eu escolheria uma peça de uma de suas coleções inspiradas na década de 1940, intitulada Libération, que causou escândalo e recebeu péssimas críticas”, conta Sébline.

“Era extraordinária, muito revolucionária. Eu escolheria um casaco com penas de avestruz em múltiplas cores que ele exibiu tendo como acessório um turbante de veludo preto.”

“Adoro essa peça porque ela é lúdica e moderna, mas ao mesmo tempo revela uma incrível habilidade e savoir-faire.”

“Adoro a forma como ele consegue equilibrar as duas coisas: ele rompe com a sisudez da alta-costura, mas ao mesmo tempo respeita essa tradição. É uma peça linda, poderia ser vestida hoje”, diz Sébline.

Yves Saint Laurent descobriu cedo sua vocação. Adolescente, apaixonado por moda e teatro, vivendo na Argélia durante a colonização francesa, ele comprava revistas de moda importadas da metrópole — e logo começou a costurar para a mãe e as duas irmãs.

Em 1953, aos 17 anos, ganhou o terceiro prêmio em uma competição de moda organizada por uma entidade internacional que promovia o uso de lã.

Costureiros famosos, como Hubert de Givenchy e Christian Dior estavam entre os jurados. Para receber o prêmio, ele viajou com a mãe para Paris. Nessa viagem, conheceu alguém que, dois anos mais tarde, teria um papel crucial em sua carreira: o então editor-chefe da revista Vogue francesa, Michel de Brunhoff.

Saint Laurent era ambicioso e sabia o que queria. Charles Sébline conta que, em seu período trabalhando no ateliê de alta-costura do estilista, ouviu da diretora da casa uma história reveladora. Em visita a Paris, passeando pela Avenue Montaigne com a mãe, o jovem Saint Laurent teria apontado para um prédio e dito: “Um dia vou desenhar roupas ali”. O prédio era nada mais, nada menos do que a Maison Dior, responsável por quase 50% das exportações de alta-costura da França.

Anos mais tarde, em junho de 1955, vivendo na capital francesa, Saint Laurent enviaria ao editor da Vogue uma coleção de esboços. Impressionado com a qualidade dos desenhos, De Brunhoff os teria mostrado a Christian Dior. É assim que YSL concretiza seu plano e começa a trabalhar para a grife francesa mais importante da época.

Mas para entendermos o efeito transformador que o estilista teve no mundo da moda, é preciso explicar como era esse universo antes dele surgir.

O mundo da alta-costura antes de Saint-Laurent

Após a Segunda Guerra Mundial, o setor da alta-costura renasce e vive uma de suas fases áureas. Estilistas resgatam o esplendor, a beleza e opulência característicos do período entre as duas guerras, com uso generoso de tecidos e bordados.

Mulheres de uma certa posição social não compram roupas prontas — elas vestem modelos exclusivos criados para elas nos ateliês de grandes costureiros. Ou seja, vestem haute couture, termo francês para alta-costura. Mas o que é alta-costura?

“A alta-costura é um jeito de criar moda que surgiu em Paris em meados do século 19”, explica Emilie Hammen.

“Nesse período, ocorre um reposicionamento do papel e imagem da pessoa que cria moda. O criador de moda se estabelece como um artista da moda, e é por isso que, mais tarde, a alta-costura passa a ser considerada uma forma de arte.”

Ela prossegue: “A alta-costura surge, então, da junção entre o mundo criativo das belas artes e as técnicas de costura manuais.” Para ser percebida como arte, no entanto, a alta-costura requeria certos rituais.

“Isso é algo que os grandes costureiros sempre fizeram questão de preservar”, diz ela.

“Primeiro, você ia (ao ateliê) para que fossem tiradas as suas medidas. Algumas semanas depois, você retornava para fazer a primeira prova. Depois, você retornava tantas vezes quantas fossem necessárias para que essa grande obra fosse aperfeiçoada.”

Na França, no final da década de 1940 e início dos anos 1950, o circuito da alta-costura é dominado por figuras como Christian Dior e Cristóbal Balenciaga, entre outros.

Entra em cena Yves Saint Laurent. Ele começa a trabalhar na Maison Dior no verão de 1955 e, dois anos depois, é promovido a assistente de Christian Dior. Em 1957, no entanto, Dior morre inesperadamente, vítima de um ataque cardíaco. Saint Laurent, aos 21 anos, é alçado ao posto de sucessor do grande costureiro.

Aos poucos, o estilo de Saint Laurent começa a se destacar da tradição estabelecida por Dior.

Para Charles Sébline, isso fica evidente na última coleção do estilista para a Maison Dior, a coleção Beatnik, lançada em 1960.

“Nessa coleção, você começa a ver um dos traços característicos do estilo de Saint Laurent, que é a influência da (moda da) rua.”

“Havia nessa coleção uma peça chamada Chicago, uma jaqueta de (pele de) crocodilo com detalhes em vison. É revolucionária. Acho que essa é a primeira coleção verdadeiramente dele, e ele cria essa coleção ainda na Maison Dior.”

“Ironicamente, foi justamente a modernidade dessa coleção que teria provocado sua demissão”, conta Sébline.

É também nesse período que Saint Laurent conhece o homem que seria seu companheiro de vida e sócio, tido por muitos como um dos pilares do sucesso comercial do estilista: Pierre Bergé.

Em 1960, Saint Laurent é convocado para lutar contra a Argélia, que travava uma guerra de independência para se libertar do domínio francês. Ele não resiste aos campos de treinamento — sofre uma crise nervosa e vai parar no hospital. Demitido da Maison Dior, ainda na cama do hospital, ele propõe a Bergé que os dois abram juntos um ateliê de alta-costura, e que Bergé seja o administrador.

“Bergé era um gênio por sua habilidade de se adaptar a qualquer situação”, diz Sébline.

“E sempre encontrava um jeito de criar espaço para a criatividade de Saint Laurent. Eram opostos que se complementavam.”

Vestidas para a batalha — como a moda de Saint Laurent deu poder às mulheres
Livre para criar, Saint Laurent se estabelece no mundo da moda. Emilie Hammen tenta definir a visão e o estilo por trás de suas criações.

“Um traço que dominará sua carreira é a forma como ele vê as mulheres. Ele não estava interessado em criar uma imagem idealizada da mulher, algo que Dior, como um pintor do século 18, teria feito. Ele era mais pragmático. Era como se ele se perguntasse: Como é que vou vestir essas mulheres?”

E vai além: “Como é que você veste mulheres jovens, que no início da década de 1960 vão ter acesso a mais oportunidades profissionais?”

“Estamos falando de um guarda-roupa completo, com terno, casaco, blusas — que ele reinventará durante toda a sua vida.” Alguns estilistas buscam uma nova estética a cada nova estação, segundo Hammen — Saint-Laurent, não.

“Para Yves Saint-Laurent, não se tratava de renunciar a tudo o que ele havia feito na coleção anterior. Para ele, a ideia era continuar trabalhando nessas peças icônicas, que ele vai reinterpretar coleção após coleção, década após década.”

Flaviano lembra uma frase famosa do estilista: “Saint-Laurent dizia: A moda desaparece, mas o estilo é eterno.” “As peças icônicas que Emilie (Hammen) mencionou definem o estilo de Yves Saint Laurent, e esse é o estilo que acompanhará as mulheres em sua emancipação.”

Aqui, Flaviano toca em uma questão recorrente em discussões sobre a obra do estilista: podemos dizer que ele era um feminista? Seu companheiro, Pierre Bergé, costumava dizer que Coco Chanel tinha dado às mulheres a liberdade, mas Saint Laurent tinha dado a elas o poder.

Flaviano, no entanto, não acha que se tratava de feminismo. “Eu não diria que ele era um feminista, mas ele acompanhou as mulheres em sua emancipação”, afirma.

“Quando você observa as roupas emblemáticas que definiram os dez primeiros anos da carreira de Saint Laurent, o que é interessante é que são roupas utilitárias. O macacão é a roupa do aviador, o trench coat é a roupa do Exército britânico, a pea jacket é a roupa dos marinheiros.”

Além de utilitárias, ele continua, são roupas masculinas que Saint Laurent adapta para o corpo da mulher “para expressar sua feminilidade, mas também para dar a ela, junto a aqueles códigos, o poder”.

“Difícil estabelecer quem veio primeiro, o smoking de Yves Saint Laurent ou a segunda onda feminista”, analisa Emilie Hammen.

“Mas é verdade que os objetos que ele criava geravam imagens muito fortes, imagens de moda, e não precisamos demonstrar o impacto que imagens de moda podem ter na construção da identidade feminina.”

“E embora ele não seja o único responsável por essas grandes mudanças, nas batalhas pelos direitos das mulheres travadas na França na década de 1970, ele com certeza contribuiu para o discurso visual que levou a essas grandes mudanças”, ela acrescenta.

Hammen está falando do efeito simbólico da moda sobre o imaginário coletivo daquela época. Flaviano tenta expressar de forma mais concreta o mecanismo pelo qual, na visão dele, a moda de Saint Laurent transferiu poder às mulheres:

“O smoking era vestido por homens que, depois do jantar, se retiravam para a sala de fumar e ali fumavam charutos e falavam de política e economia. Então, criar um smoking para as mulheres significava, claro, dar a elas esses códigos, mas também permitir a elas que fumassem, usassem calças e, junto a isso, falassem de política e economia.”

“O nome dessa nova linha, Rive Gauche, que vai existir paralelamente à linha de alta-costura, sugere uma conexão com a geografia da moda em Paris”, explica Hammen.

Rive Gauche, em francês, quer dizer margem esquerda. E é à esquerda do Rio Sena, na Rue de Tournon, em Paris, que o estilista abrirá sua loja.

Já a alta-costura, acrescenta Hammen, tinha sido fundada à direita do rio.

“A Maison Dior, por exemplo, fica na Avenue Montaigne, na margem direita”, diz ela.

“Ao escolher a margem esquerda, onde estão as universidades e os cafés, Saint Laurent está enviando uma mensagem. Ele está redefinindo a prática, a criação e o consumo da moda.”

Agora, em vez de fazer incontáveis provas de roupa, as mulheres pegavam as peças na prateleira.

“Ele foi o primeiro mestre da alta-costura a abrir uma boutique”, diz Flaviano.

“Ele costumava dizer que seria muito triste se a moda fosse apenas para os clientes ricos.”

Outra coisa que ele dizia, lembra Charles Sébline, é que queria ter sido o criador da calça jeans.

“Isso mostra o quanto ele queria vestir as ruas, ser relevante. Daí a importância da Rive Gauche.”

A esses críticos, Emilie Hammen diz o seguinte:

“A arte da moda é algo complexo. Você não constrói um nome como costureiro apenas criando belas roupas”, argumenta.

“Fazer uma roupa é uma coisa, ser um homem de negócios talentoso é outra.”

Para ela, a forma como Bergé construiu uma imagem em torno do estilista e da Maison Yves Saint Laurent é muito interessante.

“Os bastidores de um ateliê de moda exercem um grande fascínio, e Bergé percebeu isso. Ele tinha muita consciência de seu papel, como condutor dessa narrativa.”

Yves Saint Laurent apareceu nu na campanha de lançamento de seu perfume para homens. E seu apelo era reforçado também por sua associação com mulheres famosas — entre elas, a atriz francesa Catherine Deneuve.

“Deneuve era a número 1. Parte da genialidade de Saint Laurent e Bergé foi sua associação com essa importante e icônica atriz francesa. Essa mulher loura, incrivelmente linda. Eles fizeram um casamento que durou 40 anos.”

“Bergé costumava dizer, basta olhar para as mulheres nas ruas e você vai ver o maravilhoso legado de Yves Saint Laurent. Toda mulher, mesmo sem saber, deve alguma coisa a Yves Saint Laurent. Por usar calça comprida, por usar um trench coat.”

Na opinião de Emilie Hammen, o legado do grande mestre também está presente no mundo da arte.

“O vestido Mondrian pertence à história da arte assim como à história da moda, é um ‘momento pop art’, essa atitude de pegar uma obra de arte icônica e colocá-la nessa commodity que é um vestido — embora seja um vestido de alta-costura”, diz.

Ela inclui, na mesma categoria, a coleção Ballet Russe, de 1976, em que Saint Laurent reinterpreta a arte folclórica russa.

“São dois momentos em que Yves Saint Laurent elabora um diálogo complexo e fascinante entre as duas (arte e moda).”

Mas muitos talvez se perguntem: e Saint Laurent como pessoa? Como ele era? Charles Sébline conta sobre a experiência de ter trabalhado com o grande estilista.

“Não falava muito, mas quando falava, era sempre com bondade. Assisti-lo trabalhar era extraordinário. A atmosfera no estúdio era maravilhosa.”

Uma vez, lembra Sébline, os dois estavam trabalhando sozinhos no ateliê, e Saint-Laurent estava consultando, como referência, o álbum de fotos de uma coleção que havia criado em 1971. O costureiro olhava uma foto em particular.

“Eram suspensórios de zircônia sobre um tronco nu, por baixo de um smoking preto. É um visual muito icônico.”

“Ele colocou o álbum (de fotos) em cima da minha mesa e perguntou: ‘O que você acha?’ Mas eu acho que ele era tímido demais para ouvir a resposta”, comenta Sébline.

“Então, ele foi para o corredor. Depois voltou e perguntou: ‘O que você acha?’ E eu falei: ‘É extraordinário, é de tirar o fôlego’. E é um visual que foi reinterpretado por tantos outros designers.”

“Ele tinha essa forma de criar uma relação muito tocante, e era incrivelmente apaixonado pelo que fazia. Mesmo nos últimos anos de sua carreira, tinha controle completo sobre sua arte.”

Matéria original: BBC NEWS

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