A influência da literatura simbolista de Cruz e Sousa na obra do Sad Theory

10 de março de 2023

Banda de death metal cria cenários espantosos baseados na literatura maldita e conceitos distópicos

O mais recente álbum da banda Sad Theory obteve grande retorno entre os fãs e a imprensa especializada, tanto que Léxico Reflexivo Umbral concorreu em votações de melhores do ano em diversos veículos. Todavia, não apenas a parte musical chamou atenção dos headbangers.

A interessante premissa de ser baseado na série Black Mirror alçou o trabalho a um novo patamar. Porém, há ainda outras camadas de intertextualidade presentes, como o uso de poemas de Cruz e Sousa, importantíssimo poeta brasileiro do século XIX, que combina incrivelmente bem com a temática da banda.

A criação artística literária, da qual as letras de música inevitavelmente são parte, acontece em ciclos. Inovações são, muitas vezes, reinterpretações de conceitos antigos enriquecidos por aspectos contemporâneos, e a mescla do Simbolismo de Sousa ao caráter distópico e pessimista de Black Mirror é um exemplo disso. Na verdade, grande parte desta nova fase da banda tem um caráter neo-Simbolista.

A letra da faixa “Cavador do Infinito / Metempsicose” é a junção de dois sonetos de mesmos nomes do poeta, e para entender plenamente seu papel no álbum, é preciso compreender a essência do Simbolismo. Essa escola literária teve, no Brasil, seu auge na última década do século XIX, e resgatou o caráter transcendente do Romantismo, mas de modo muito menos idealizado. Nela, os textos visam um entendimento da realidade para além do empírico, buscando um todo universal em fenômenos como a Natureza, Deus, ou o Nada. Isso, é claro, evoca uma antiga dor transcendente e filosófica, a qual é moldada pela beleza estética nada ortodoxa que os Simbolistas conseguiam dar às suas obras.

Ouça o álbum Léxico Reflexivo Umbral: https://open.spotify.com/album/2zxE5oj7ySrkPS1hYYPo2P 

O baixista e letrista Daniel Franco comenta sobre a carga lírica da canção: “‘Cavador do Infinito’ trata magistralmente das consequências inesperadas de se explorar o desconhecido (‘O Infinito transformou-se em Lava’), que é o tema central da série Black Mirror, da qual o disco tira inspiração. Um pouco mais específica, ‘Metempsicose’ lida com a fluidez da alma através de diferentes receptáculos, tema que também se faz presente na série, de mais de uma maneira. Por fim, ‘Ébrios e Cegos’ é o título emprestado também de Cruz e Sousa, e nomeia a faixa instrumental que fecha o álbum. O clima de ressaca pós-apocalíptica dos versos está presente na atmosfera da música, ainda que as palavras, não”.

A metáfora nada usual do “Cavador do Infinito”, um ser não identificado que cava pelo Universo todo de modo inerentemente angustiante, é análoga ao medo do futuro proposto em Black Mirror e também às nuances introspectivas que o death metal costuma ter. Essa ânsia por explorar coisas grotescas e/ou macabras é outra herança do Simbolismo, a qual se iniciou (ou ao menos ganhou enorme popularidade) no livro “Flores do Mal”, de Charles Baudelaire (trabalho abordado pelo próprio Sad Theory, há cerca de duas décadas, no CD A Madrigal Of Sorrow), considerado o precursor e a “bíblia” dessa Escola.

“Metempsicose” também é uma herança secular que foi reinterpretada várias vezes ao longo do tempo. O termo, que tem origem na Grécia Antiga, se refere à transferência da alma entre os corpos, em geral após a morte destes. O termo foi recontextualizado por filósofos contemporâneos a Cruz e Sousa, como Arthur Schopenhauer, e também pelo próprio Sousa, evocando angústias mais profundas. O conceito também é relembrado, ainda que não nominalmente, por Black Mirror, literal e figurativamente, com questões como a transferência de consciência e a ressurreição, e por isso se encaixa tão brilhantemente no álbum.

Foto: Divulgação

A maldita tradição literária brasileira é, há tempos, fonte de inspiração para o grupo: “Quando me foram apresentados os materiais produzidos para o Vérmina Audioclastia Póstuma, em 2015, isso já havia ficado claro para mim. O Guga [vocalista] havia escrito três letras, todas com uma carga existencial e pessimista muito forte. Já estava pronta também a ‘Tédio’, poema musicado do João da Cruz e Sousa, que levava esse conceito do decaimento para níveis nefelibáticos. Ali já se desenhava na minha frente todo um conceito e as letras restantes foram praticamente se escrevendo sozinhas. O primeiro verso da primeira música já é uma referência direta ao ‘Monólogo de uma Sombra’, de Augusto dos Anjos, e as canções foram ordenadas de forma a, como numa ópera, delinear acontecimentos. ‘Tédio’, nesse quadro, acabou repousando no local que simbolizava a monotonia da rotina de um enfermo em franca decadência física e psíquica. Esse caráter altamente metafórico dos simbolistas permite uma impressionante versatilidade para cimentar diferentes conceitos.

No álbum seguinte, Entropia Humana Final, não foi diferente. Ele chafurda a fundo em episódios tétricos da sociedade humana no século XX, morticínios em massa, genocídios de variadas formas, os demônios interiores assumindo o controle dos indivíduos e das coletividades às claras. Nesse caso, ‘Antífona’, também de Cruz e Sousa, foi incluída como poema musicado, assim como a ‘Tédio’ no álbum anterior. Ela traz, além dos aspectos pessimistas e existencialistas de sempre, a solenidade do rito religioso, como se buscasse alcançar as múltiplas almas desencarnadas pelos eventos das outras letras. Ou seja, trouxe a liga lírica que projetou os acontecimentos descritos para a dimensão metafísica/espiritual”, explica.

Este histórico da segunda encarnação do Sad Theory, considerando o retorno em 2012, deve seguir no futuro: “Assim criou-se uma tradição, e é bem possível o Dante Negro, assim como seus notáveis pares malditos, sigam como nossos patronos para os próximos álbuns”, finaliza Franco.

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